terça-feira, 27 de março de 2012

"A PACATA CIDADE DE ALTAMIRA NO ESTADO DO PARÁ ESTÁ UM CAUS, RECLAMAM OS MORADORES"



Após obras de Belo Monte, 

Altamira enfrenta insegurança e 

alta de preços.











Lunaé Parracho/Terra Magazine
Terra Indígena do povo Arara da Volta Grande do Xingu, que vive na área de influência de Belo Monte.
Terra Indígena do povo Arara da Volta Grande do Xingu, que vive na "área de influência" de Belo Monte.





















Em 3 de Janeiro, foi publicada do Diário Oficial, pela ANEEL, a última desapropriação de terras para a construção de Belo Monte, uma declaração de utilidade pública para uma área 282,3 mil hectares no Pará. A declaração foi solicitada pela Norte Energia, empresa responsável pelo empreendimento, que na prática ficou autorizada a remover e "reassentar" ribeirinhos, índios e moradores de Altamira. Este é considerado um dos pontos mais polêmicos no projeto da usina, com o cadastro de famílias instaladas em áreas de interesse dos empreendedores sendo feito sem o devido esclarecimento da população local.
No final do ano passado foi derrubada a liminar, obtida pela Associação dos Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais de Altamira (Acepoat), que impedia o consórcio de intervir no leito do rio Xingu. Desde então o barramento do rio já começou e a obra segue acelerada. Quem vê as muitas dezenas de máquinas e milhares de operários trabalhando sem parar nas proximidades do km 50 da rodovia Transamazônica pode ser levado a pensar que não há mais nada que se interponha no caminho da maior obra em andamento no País.
A não ser pessoas.
"Agora a gente vive assustado"
Onze horas é o tempo que se pode levar para chegar a Altamira, saindo de São Paulo com escala em Belo Horizonte e conexão em Belém. Pode-se levar 14 horas no trajeto de aeroportos desde Florianópolis. O aeroporto de Altamira não tem capacidade para receber aeronaves maiores e por isso as grandes companhias não operam lá. Uma passagem Belém-Altamira - distantes cerca de 900 km uma da outra - chega a custar 2.400 reais. O oeste do Pará é um lugar que soa ser outro mundo mesmo para muitos dos que moram na capital do Estado.
Em Altamira, dona Josefa Barbosa, 56, que administra uma loja no mercado municipal - um dos únicos três lugares onde se encontra cigarros da marca Marlboro à venda - desabafa: "Aqui era tranquilo, a gente vivia sem medo, mas agora a gente tem que andar segurando a bolsa na rua. A gente vive assim, assustado." Depois que a filha foi assaltada quando voltava pra casa, Josefa decidiu antecipar em 3 horas o fechamento diário do seu comércio.
As vendas diminuíram, mas ela se sente mais segura assim desde que dispararam os assaltos e roubos na cidade, este ano. Ela também fala da piora do trânsito, reclama do aumento do aluguel e do surgimento de inéditas longas filas nos bancos e padarias. "Altamira tá ficando uma cidade violenta", diz. "Aqui era muito bom... Mas agora tá parecendo uma cidade grande".
O sentimento de dona Josefa - que prefere não tirar nenhuma foto com medo de alguma represália - é compartilhado pela maioria dos moradores desta pequena cidade onde tudo mudou desde que começaram as obras de Belo Monte. Mas ela afirma que o ganho dos pequenos comerciantes segue igual. "A gente não sentiu mudança nenhuma, se alguém tá ganhando dinheiro são os empresários grandes, como esses donos de hotel", diz.
O Amazon Xingu, maior hotel da cidade, onde a diária passou de 60 para 190 reais em menos de um ano, está com todos os 40 quartos ocupados, sendo a metade permanentemente alugados para o consórcio construtor de Belo Monte. "Uma casa pra alugar, você não acha aqui. Se achar, é caro. Uma casa de dois quartos o povo pagava 400 ou 350 reais, agora é 1.500, até 2.000, quando acha. Eu vejo gente aqui chorando, no correr do dia, porque teve que sair de casa por não poder mais pagar o aluguel. Mas quando terminar essa construção, eu quero ver o que vão fazer com esses aluguéis", desabafa Josefa Barbosa.
"Eu ando triste", confessa, "mas pra lhe falar a verdade, nós não somos ninguém pra dizer: eu não quero barragem. A gente não pode dizer isso porque não adianta. Isso aí tá bem distante da gente. É com eles lá, com as pessoas grandes. E não tem mais jeito. A barragem vai se realizar de todo jeito, queira ou não queira. Não tem mais jeito".
"Não quero ser enganada de novo"
Raimunda Gomes da Silva, 51, é do estado vizinho do Maranhão. Morava em Belém quando conheceu João, com quem se casou e mudou para Tucurui, em 1977. Os dois foram atraídos pela promessa de trabalho na construção da hidrelétrica de Tucuruí, mas na época da inundação foram tirados do lote em que moravam e realocados em um outro terreno, junto com outras 15 famílias. Ganharam uma casa de madeira e receberam a promessa de uma indenização em dinheiro. Mas o novo lugar era próximo da barragem e foi invadido por uma praga de mosquitos.
Onças em fuga rondavam a área e uma família foi atacada por um destes animais. Eles nunca receberam a indenização. Saíram de lá e mudaram para Altamira. Hoje, ela mora na periferia da cidade, em um bairro chamado Invasão dos Padres, com o marido, uma filha e uma neta. A área será inundada e Raimunda terá de ser realocada de novo, por conta da construção de Belo Monte.
"Um dia eles vieram aqui, fizeram fotos, perguntas e disseram que a gente vai ter que sair", revela. "Eles falaram numa reunião que as casas vão ser bonitas mas eu disse pra eles: 'eu não acredito'. Eu já fui enganada uma vez e não quero ser enganada de novo. Não quero sair daqui. Eles dizem que até fevereiro vamos ter que sair, disseram que vão dar uma casa pra gente, mas não informaram pra onde a gente vai", lamenta. "Só Deus pra dizer o que vai acontecer".
O marido de Raimunda é pescador. O preço do quilo do peixe dobrou na região em menos de um ano. O quilo do tucunaré era R$ 3,50 e agora é 7 reais. Com o aumento do preço do peixe, mais gente começou a pescar e por isso, ela diz, o marido tem que ir muito mais longe pra encontrar os cardumes, gastando mais combustível no barco, e mais tempo no rio.
"Não tem canto pra gente ficar"
Maria Celi Souza, 54, moradora do Baixão, área da periferia de Altamira que vai ser afetada pelo alagamento, mora com o pai, quatro filhos e um neto. Na casa ao lado, num cartaz de propaganda da Norte Energia afixado na porta, lê-se: "A Norte Energia faz o melhor pra você".
"A gente não quer sair, mas eles tão dizendo que todo mundo vai sair. Passou no jornal que eles querem dar só 8 mil reais e a gente não quer, porque não dá pra nada", diz Maria. "Pessoas do consórcio (construtor de Belo Monte) vêm aqui, entram em todas as casas, pegam nome e falam que vão encher tudo de água e que não vai ter como a gente morar por cima da água... Que a gente vai ter que sair daqui. Mas eu não quero sair. Pra onde que a gente vai? Eles falam que vão arrumar um lugar pra gente. Mas até agora não fizeram nada, não tem canto pra gente ficar. E no jornal passou que eles só querem dar 8 mil reais. Que não dá pra nada, né? E jornal não mente, né?".

Cidade de Altamira, no Pará (Foto: Lunaé Parracho)
"Carregar os animais pra outro lugar"
Moacir Oliveira Moreira, 75, e Maria de Lurdes Mileo Moreira, 73, são moradores do bairro Açaizal, em Altamira, que será alagado por Belo Monte. Dona Maria está indignada. "Eu não nasci aqui. Sou paraense, nasci em Santarém. Mas eu gosto daqui. Eu vejo esses ribeirinhos que moram no rio... Eles não querem sair. Tem pessoas idosas lá, que são bisavós e tudo, e eles não querem sair. Isso vai ser uma tristeza tão grande... Eles dizem "remanejar", né? Parece que o ser humano em Altamira virou manada, de gado, boi, vaca... Remanejar que eu sei é isso, né? Carregar os animais pra outro lugar", diz.
"E outra coisa que eu tô vendo: parece que eles querem tomar a cidade de Altamira. Tomar conta de tudo. Aqui nós não somos nada pra eles. O que eu tô vendo aqui de ônibus pra carregar trabalhadores - não pra servir a comunidade que tá morando aqui - mas pra o trabalho deles... Pra iludir. Tem pessoa assim que é pobre como eu e qualquer coisa se ilude.. E carro novo... Esses encarregados chegam nas casas das pessoas pra iludir. Quando tem aniversário, compram caixas de cerveja pras pessoas. Eu tô vendo essa mudança boa pro lado deles."
"A gente vê na televisão eles falam na preservação da natureza, da Amazônia, da ecologia... Aí eu fico pensando: que ecologia é essa? E essas pessoas que não têm dinheiro pra aluguel de casa, porque o aluguel subiu um absurdo? Tem pessoas que estão se iludindo fazendo prédios com essa ganância de alugar. Agorinha eu tava pensando. Uma das coisas que tá vindo, que a gente tem certeza que tá chegando é a marginalidade.. Até arrombamento de caixa eletrônico tão fazendo. Pra sair na rua eu tenho receio. Antes eu andava na rua tranquila, a qualquer horário."
Moacir, quando perguntado se tem pra onde ir caso tenha que sair da sua casa, responde sem hesitar: "Rapaz, não queria sair não. Eu não sei o que dizer, eu tenho 9 filhos. Minha esposa é essa, a única mulher que eu tive, nunca me amiguei com ninguém, nunca tive outra pessoa do meu lado, só ela mesmo. Então eu não queria sair daqui. Eu vou lhe dizer uma coisa: o senhor vai ver lá como é a pior miséria abaixo de Tucuruí, as moça se prostituindo por 10 reais que não tem escola, os pescadores não podem pescar mais... Eu assisto muito aquele programa do Datena, sabe? Da Bandeirantes. Eu queria muito que ele viesse aqui dar uma olhada, porque ele sempre mete o pau no governo e mete o pau naquelas coisas que tão erradas."
"Não houve as oitivas indígenas"
Vive sob proteção da Força Nacional de Segurança. Zé Carlos, 32, cacique do povo Arara, ameaçado de morte por invasores da Terra Indígena dos Arara da Volta Grande:
"Nós, Arara da Volta Grande, somos hoje 116 pessoas entre crianças e adultos e nós viemos numa luta muito grande em busca do nosso direito. Não éramos reconhecidos como Terra Indígena até 1998 e nós tomamos a decisão de lutar. Hoje estamos com a Terra demarcada mas falta a desintrução, que estamos esperando até agora. Nós teremos a vazão da Volta Grande do rio Xingu reduzida com Belo Monte e a primeira coisa que acontece com a gente é a perda da navegabilidade. Nós não temos outra entrada ou saída para a aldeia a não ser pelo rio. E na verdade a gente ainda não sabe como vai ficar com a chegada de Belo Monte. O que a gente vê, de momento, é que nem a Funai nem o empreendedor sabe nos dizer como nós vamos ficar. Como vai ficar nossa navegabilidade? Além de saúde, educação e da desintruçao da nossa Terra estamos agora com essa coisa de Belo Monte e não recebemos esclarecimentos".
"Nao houve as oitivas indígenas", diz o cacique Zé Carlos. "Eles usaram reuniões de apresentação do projeto e 'transformaram' isso em oitivas".
"Eu estive cara a cara com o presidente Lula no mandato dele. Tivemos uma audiência de mais de uma hora e meia com ele e saímos decepcionados. Não sabemos nem o que dizer mais. A gente vê o governo da Dilma igual ao do Lula, que tinha dito pra gente que não ia 'meter caminhão goela abaixo de ninguém', mas não foi isso que aconteceu? O caminhão despencou da ribanceira pra descer goela abaixo, o mesmo caminhão no governo de Dilma. O que eu diria pra eles agora é somente pedir que eles respeitem os direitos humanos. Somente isso. E se for necessário a gente repete tudo de novo pra presidente Dilma, pro presidente da Norte Energia e pro presidente do IBAMA, que também nos enganou com mentiras absurdas. O que a gente vê é um país que só pensa em economia, que só pensa em gerar dinheiro às custas das pessoas, principalmente as custas das comunidades indígenas".
"Trabalho sujo pra calar a boca"
Diante do local exato onde se planeja levantar a barragem de Belo Monte no rio Xingu, Sheyla Juruna, 37, liderança indígena da região, se emociona:
"Neste local está prevista a construção do grande paredão de Belo Monte. Um paredão com 6 km de distância. Aqui o rio vai ser barrado e pra nós imaginar isso é muito triste. Porque barrar o rio é como barrar parte do nosso corpo. O rio Xingu é nossa vida. Esse rio é sangue que corre no nosso corpo. E não tem como prejudicar uma parte do seu corpo sem prejudicar o seu corpo todo. A gente percebe que barrar uma parte do rio Xingu vai trazer muitas consequências no futuro. Eu lamento o futuro de nosso povo.
"Nós temos uma regiao rica em biodiversidade e é preciso que a sociedade se conscientize que não se constrói destruindo a vida das pessoas, sabe? A vida é toda interligada, o ser humano, rio, floresta, animais, todo o planeta. Tudo está ligado. Se você mexe numa coisa, assim está consequentemente destruindo outras coisas. Nós não defendemos essa forma de desenvolvimento e continuaremos firmes nesta luta e vamos conseguir vencer pela justiça, que é muito mais forte do que esse poder que está aí se achando o dono da verdade."
Sheyla vive na aldeia Boa Vista, localizada no Km 17 da Transamazônica. É a comunidade indígena que fica mais próxima do canteiro de obras e já sofre com o aumento do fluxo de máquinas na rodovia Transamazônica, com especulação imobiliária e pessoas estranhas invadindo a terra, segundo relata. A terra indígena dos Juruna do Km 17 ainda não foi demarcada (a demarcação e desintrusão de todas as terras indígenas consideradas dentro da "área de influência" de Belo Monte se tornaram condicionantes para a construção da usina).
"Nós somos contra Belo Monte, mas a ampliação, a demarcação e a desintrusão das nossas terras é agora condicionada à obra. Agora nos tornamos reféns de nossos direitos. E nossos direitos não dependem de Belo Monte. As oitivas não aconteceram. Essas equipes que fizeram estudos sócioeconômicos - e é a Norte Energia que está pagando esses estudos, os antropólogos que fazem os estudos - vieram até a gente, com um engenheiro da obra, e apresentaram o projeto. Mas não fomos consultados. Um técnico da Funai de Brasília estava lá, veio apresentar essa equipe mas ele falou com todas as letras: 'Isso não é uma oitiva.. As consultas aos indígenas vão ter que acontecer antes de sair a obra'"
Em novembro de 2011, foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) uma das Ações Civis Públicas do Ministério Público Federal (MPF) que questionava a legalidade do decreto legislativo que atorizou a construção da hidrelétrica de Belo Monte, por não terem sido ainda realizadas as consultas prévias às comunidades indígenas previstas no §3º do artigo 231 da Constituição e na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em seu voto final, a desembargadora Maria do Carmo, no TRF1, negou a necessidade das consultas prévias: "Pouco importa que sejam realizadas antes da autorização do decreto, bastando que ocorram antes da implementação do empreendimento. A oitiva não é vinculante, e sim meramente informativa. Cabe ao Poder Público decidir o que é melhor para os brasileiros, inclusive para os brasileiros indígenas".
Pelo fato de que nenhuma terra indígena será alagada, a Norte Energia e grupos favoráveis ao empreendimento disseminam a informação de que os impactos aos indígenas são mínimos. "Não sei qual é a visão que eles têm de impacto, mas pra nós isso tudo é impacto", afirma Sheyla Juruna. "O contexto histórico do nosso povo Juruna conta muito claramente o que nós passamos. Todo o processo que nós sofremos de expulsão de território, perdas culturais do nosso povo com esses projetos de desenvolvimento, desde a abertura da transamazônica, do ciclo da borracha. Com tudo isso nós sofremos e agora de novo outra hstória de desenvolvimento. E, na verdade, não tem desenvolvido nossos povos, tem trazido só a desgraça. O que vai ser de nós, agora? Eu fico na porta da minha casa, vendo grandes máquinas passando, dia após dia.. A gente está sem segurança nenhuma na nossa área, nesse território onde vivemos há mais de 60 anos, depois de sermos expulsos de nossas terras", completa Sheyla.
"Nós queremos o fim da obra. Nossos parentes sobrevivem do rio. E eles não tem dado condições nenhuma pra gente. O que eles dão é cesta básica. A Funai fez um acordo e a Norte Energia entrega R$ 30 mil por mês em produtos. O técnico da Funai chegou nas aldeias e disse pros índios: 'Vocês podem pedir o que quiserem que a Norte Energia vai comprar'. Aí as aldeias fazem listas de compras: barco, combustível, feijão, arroz... Isso é um trabalho sujo pra calar a boca das pessoas que são enganadas pela inocência. Nossos direitos independem de Belo Monte. Chegaram produtos vencidos, com notas superfaturadas. E eram 28 aldeias no início, mas pra receber mais dinheiro algumas aldeias se dividiram e criaram outras aldeias. Hoje são mais de 30 aldeias recebendo com as listas. Isso dividiu as comunidades. Nós estávamos preparados para o embate contra Belo Monte, mas isso desmobilizou as comunidades. As comunidades estão caladas."








***FRANCIS DE MELLO***

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